Quem é o dono dos seus dados? Provavelmente não é você

Garry Kasparov 18 nov 2019

Decisões da Suprema Corte dos EUA mostram como a lei evolui de acordo com a tecnologia

Quero voltar um pouco no tempo para dar uma visão mais ampla sobre o assunto deste artigo, abordando questões históricas e legais. Tecnologia não se limita apenas a hardware e software. Ela é um componente fundamental presente em todos os aspectos das nossas vidas e em nossa sociedade.

Quando o advogado geral dos EUA, William Barr, admitiu recentemente que a implementação de backdoors por determinação legal tornou a criptografia menos efetiva, isso, surpreendentemente, foi notícia. Mas por muito tempo o governo norte-americano tem minimizado essa questão, dizendo que vigilância estatal poderia co-existir tranquilamente com segurança de alto nível. Agora, como escreveu o renomado especialista Bruce Shneider, podemos ter um debate real sobre essa relação:

“Com essa mudança, finalmente podemos ter uma conversa política sensata. Sim, a inclusão de backdoor aumenta nossa segurança coletiva, porque permite que órgãos de segurança espionem a ação dos bandidos. Mas a inclusão de backdoors também diminui nossa segurança coletiva, porque os bandidos têm a possibilidade de espionar todo mundo. É exatamente esse o debate político que deveríamos estar tendo, não aquela conversa falsa sobre a possibilidade de termos segurança e vigilância ao mesmo tempo.

Quer você prefira criptografia inquebrável em mãos públicas ou não, é fundamental neste assunto admitir que não podemos ter tudo ou agradar a todos o tempo todo.

Na medida em que nossa tecnologia evolui, nossas leis precisam se adaptar para acompanhar os avanços. Leis totalmente novas - ou mesmo órgãos reguladores completamente novos - são necessárias para tratar sobre as novas invenções na medida em que elas ganham popularidade. Milhões de automóveis não poderiam ser regulados da mesma forma que as carruagens puxadas a cavalo. Medicamentos, aeronaves, bancos, telefones, produção de alimentos e armas são reguladas de acordo com o interesse público – uns diriam que excessivamente e outros que nem tanto.

Esse cabo de guerra entre interesse privado e público tende a criar um equilíbrio funcional, mesmo que isso dure décadas e nunca chegue realmente ao fim. Ocasionalmente há correções severas, como quando o governo dos EUA quebrou, em 1911, a Standard Oil Company, empresa de propriedade da família Rockfeller. É comum que regulações sejam seguidas por uma crise que chama a atenção da opinião pública, o que não é uma forma ruim das coisas acontecerem, mas seria legal evitar tais crises antecipando-se a elas. Regulações preventivas podem levar a um exagero na regulação, o que pode dificultar inovações e investimentos.

Invenções não são criadas tendo o impacto social em mente, muito menos as repercussões legais. Lucro é o motivo mais comum e os efeitos de longo termo são ignorados e desconhecidos. Uma droga bem-sucedida pode ter efeitos colaterais impossíveis de serem detectados por anos, até o dia em que são banidos. O Facebook e o Youtube podem contribuir para a radicalização política, mas não foi para isso que a rede social ou o compartilhamento de vídeos foram criados. Depende dos pesquisadores, jornalistas, órgãos legais e até de políticos olharem para esses efeitos e, se forem significativos, incentivarem ações regulatórias.

Enquanto nossas leis estão se adaptando constantemente, o que dizer sobre nossos direitos? Será que eles também evoluem com as novas invenções? A definição de certo não é algo intrínseco, imutável, eterno? Humm, para o bem e para o mal, não exatamente. Documentos fundamentais na história dos direitos dos cidadãos, como a Magna Carta inglesa, de 1215, e a Declaração dos Direitos dos Cidadãos dos EUA, de 1791, limita o poder dos governantes – reis, presidentes e parlamentares – sobre o povo. Assim, não se trata do que o governo deve fazer por você, mas o que o governo não pode fazer contra você.

Por exemplo, a Quarta Emenda à Constituição dos EUA protege os cidadãos contra “buscas e apreensões” pelo governo sem uma causa justificável e geralmente exige um mandado emitido por um juiz (assim como todo mundo que assiste a um programa de crime na TV sabe, mesmo que uma evidência de um crime seja encontrada, ela pode ser descartada no julgamento, caso tenha sido obtida sem esse mandado).

Mas os direitos da Quarta Emenda que protegem sua “pessoa, casa, papéis e efeitos” se aplicam também aos seus smartphones? E seus dados de navegação na internet, suas preferências de compras ou mesmo suas impressões digitais e código genético? Essas coisas também são propriedades suas? Ou elas pertencem ao proprietário do servidor que armazena essas informações, ou à empresa cujo algoritmo extraiu e processou esses dados?

A propriedade de dados digitais já é bastante complexa. Se você ler as letras miúdas, vai descobrir que você não é dono do software, aplicativos, músicas digitais ou e-books que comprou. Pelo menos não da mesma forma em que você é dono de um livro de papel. Em vez da propriedade, você comprou uma licença para baixá-los ou exibi-los. E ela pode ser rescindida pelo editor ou distribuidor. Uma música ou livro que você gosta hoje pode desaparecer do seu dispositivo amanhã com um simples estalar de dedos ao estilo Thanos de corporações como a Universal ou a Amazon.

Talvez você acredite que as coisas sejam diferentes com os dados criados por você, mas muitas vezes é até pior. Um aplicativo que você instala para aplicar filtros fantásticos às suas fotos pode exigir a propriedade de todos os direitos sobre aquelas criações e até mesmo usar suas fotos para publicidade no perfil da empresa (não no seu, claro). Quando pessoas passaram a reclamar sobre o uso não autorizado de suas imagens, as empresas simplesmente adicionaram algumas cláusulas aos termos e serviços de seus aplicativos concedendo essa permissão. Como ninguém lê aquelas páginas infinitas com informações legais antes de clicar em “OK”, geralmente os usuários têm pouco argumento de defesa num tribunal.

Isso pode parecer uma área obscura para pessoas como eu, que não cresceram com fotos online compartilhadas em mídias sociais (ou câmeras digitais, ou internet...), mas para essa geração, é óbvio que seus dados deveriam permanecer seus, a não ser que sejam vendidos ou explicitamente concedidos. Minha filha adolescente sabe que seus dados estão sendo enviados e armazenados no mundo todo, mas ela acredita que eles ainda sejam seus de todas as formas que interessam, ou deveriam ser. Essa é uma visão saudável. O problema é construir um sistema legal que dê suporte a isso.

Em 1928, a Suprema Corte dos EUA julgou um caso marcante, Olmstead x EUA, que mostrou como a lei pode ficar bem para trás da tecnologia em termos de direitos. Com um placar de 5 a 4, o chefe de justiça (e ex-presidente) William Taft argumentou que escutas telefônicas do réu sem um mandado não representava uma violação da Quarta Emenda, porque, antes, ela tinha sido aplicada apenas a buscas físicas.

Mas se essas palavras não ajudaram Olmstead (um contrabandista de bebidas alcoólicas durante os anos de proibição, já que estamos falando sobre leis ultrapassadas), a discordância do juiz Brandeis se tornou muito mais influente do que a opinião de Taft. Ele argumentou que ouvir ligações não era nem um pouco melhor do que abrir uma carta fechada sem um mandado – mesmo que o telefone ainda não tivesse sido inventado quando a Quarta Emenda havia sido escrita por James Madison. Como escreveu Brandeis, “formas mais sutis e abrangentes de invasão de privacidade estão disponíveis para o governo. Descobertas e invenções permitiram ao governo, por meios muito mais eficazes do que o pau-de-arara, obter informações em tribunal.”

Hoje isso parece óbvio e a luta continua com o uso ostensivo de segurança governamental eletrônica para combater o terrorismo, câmeras de vídeo em locais públicos e inúmeras formas de rastreamento em mídias sociais, sejam elas autorizadas ou não.

Em retrospectiva, a lição de Taft mostra que soa um pouco ridículo afirmar que vítimas de escutas telefônicas não mereciam proteção de privacidade porque as linhas telefônicas “(alcançam) o mundo todo a partir da casa ou do escritório do réu” e, portanto, ele estava essencialmente transmitindo livremente para o público. Hoje, enquanto estamos a todo momento conectados ao planeta inteiro, nossos direitos devem se expandir para equiparar-se ao escopo da nossa tecnologia, e não ficar congelado no tempo.

Sendo um “originalista” no que diz respeito ao risco da Constituição dos EUA pode transformar a Suprema Corte daquele país em uma versão moderna de Tafts. Um exemplo recente resultou em outra decisão por 5 a 4, mas desta vez contra o governo. O FBI obteve dados de telefones celulares sem um mandado judicial, usando-os para condenar Timothy Carpenter. A questão para o tribunal foi se o uso dos dados de localização e movimento do telefone celular violavam os direitos de Carpenter referentes à Quarta Emenda.

Para citar um resumo, em 2018, a Corte decidiu com uma margem apertada que a Quarta Emenda protege a “expectativa razoável de privacidade”, e não apenas a propriedade. “As expectativas de liberdade na era dos dados digitais não se encaixam nitidamente nos precedentes existentes, mas o rastreamento dos movimentos e a localização das pessoas pelo registro de celulares é muito mais invasivo do que casos passados poderiam antecipar”.

Está aí o resumo do problema envolvendo tecnologia e direitos. Precedentes legais não podem acompanhar o ritmo da tecnologia e mesmo direitos inalienáveis precisam se adaptar para sobreviver.

Está aí o resumo do problema envolvendo tecnologia e direitos. Precedentes legais não podem acompanhar o ritmo da tecnologia e mesmo direitos inalienáveis precisam se adaptar para sobreviver. Para juízes divergentes, principalmente porque os registros de telefone celular são os mesmos de qualquer outro registro comercial que o governo pode obter, isto é, não é de propriedade da pessoa de quem aqueles registros se referem. O juiz Clarence Thomas, ecoando as palavras de Taft 91 anos depois, também afirma que desde que as gravações não tenham sido feitas na propriedade de Carpenter, as informações não eram dele (seguindo essa lógica, a única forma em que seus dados estariam protegidos seria se você mantivesse seu próprio servidor pessoal, e nos lembramos bem sobre o tamanho do problema que isso pode causar!).

Talvez não devêssemos ser tão duros contra os absolutistas e construcionistas que nadam contra a maré no que diz respeito à reformulação legal provocada pela tecnologia. Eles também podem soar como dinossauros e estão quase que inevitavelmente do lado errado da história. Mas encontrar o balanço leva tempo, envolvendo caos e rupturas no caminho. Discutir é essencial e ter pressa para chegar ao futuro pode ser tão preocupante quanto tentar retardá-lo. Um sistema bem-sucedido reúne a indústria privada, agências governamentais, grupos de consumidores e ONGs como a EPIC. Transparência, prestação de contas e um debate público saudável são nossos melhores aliados para evitar colisões tecnológicas e regulatórias.

A propósito, até mesmo a santificada Primeira Emenda da constituição norte-americana, principalmente no que se refere à proteção da liberdade de expressão, tem enfrentado violações legais, como regulações ligadas à obscenidade, difamação e publicidade falsa. A tecnologia também tem feito sua parte, necessitando primeiramente de regulação sobre correspondências físicas enviadas para a sua casa e, depois, spams enviados para a caixa de entrada do seu e-mail. Afinal de contas, a liberdade de uma pessoa não deveria vir à custa da busca pela felicidade de outras.

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