A sede de informações nos regimes fechados impede a tomada de decisão consciente. Uma inundação de desinformação tem efeitos igualmente nocivos.
Originalmente publicado no The Parallax.
O ano passado foi sombrio para as democracias de todo o mundo: a aversão às instituições e às elites políticas atingiu um ponto de ruptura. Na Inglaterra, o Brexit venceu o senso comum e um sistema de defesa unificado. Os políticos de extrema direita continuaram a sua marcha para o poder na Europa continental. E a vitória de Donald Trump no Colégio Eleitoral Americano garantiu a eleição de um demagogo populista que critica abertamente o sistema democrático.
Ao nos aproximarmos da sua posse, Trump está liderando uma disputa pública sobre em quem se deve acreditar: no Editor-chefe da WikiLeaks – Julian Assange – e na propaganda ideológica russa, ou nas vozes combinadas das agências de inteligência norte-americanas e estrangeiras, autoridades eleitas e nos principais meios de comunicação de todo espectro ideológico.
Embora o escopo e o impacto exatos do seu relatório ainda estejam sendo analisados, o Escritório do Diretor de Inteligência Nacional declarou no início deste mês que agentes russos invadiram e manipularam a eleição presidencial norte-americana, o bastião histórico da democracia republicana. Em meio aos relatos mais detalhados desses ataques é fácil ignorar a gravidade de outro ataque à capacidade de uma democracia de representar o povo: a desinformação.
A sede de informações nos regimes fechados rouba do público a sua capacidade de tomar decisões conscientes, mas o outro extremo – uma inundação de desinformação – também tem efeitos muito nocivos.
Os custos da disseminação das informações caíram muito na era da internet. Da mesma forma, caiu o custo de interferir em eleições. A eleição de Trump confirmou que o poder da internet para disseminar informações de forma barata e sem responsabilidade pode ser decisivo no fortalecimento ou enfraquecimento do processo democrático.
O ritmo da geração de informações cresceu muito mais do que a nossa capacidade de processá-las. Fontes tradicionais como jornais e televisões a cabo ganharam os blogs e as mídias sociais como rivais, onde as pessoas podem atingir milhões de indivíduos em segundos. E como o volume coloca em risco a qualidade, as armas das "notícias falsas" estão se tornando cada vez mais poderosas.
As invasões dos computadores e da propaganda tendenciosa não são nada de novo nas relações internacionais, mas isso não torna a interferência algo aceitável. Além de forçar agendas, a propaganda tendenciosa está sendo utilizada para distrair, confundir e, em geral, enfraquecer a capacidade das pessoas de desempenharem os deveres necessários como cidadãos de uma democracia. À medida em que a desinformação prolifera, as pessoas têm menos probabilidade de confiar em qualquer coisa que estão lendo.
Em vez de se perguntar se a desinformação irá continuar – porque, na prática, ela sobreviverá enquanto for considerada efetiva – devemos nos perguntar como iremos nos defender dela.
A "sobrecarga" de informações levou as pessoas a recorrer aos seus próprios métodos de filtragem da mídia. Algumas pessoas simplesmente trancam tudo, basicamente privando-se de informações importantes e tornando-se assim eleitores facilmente manipulados. Outros, lutando para verificar a validade das notícias que leem, podem prestar atenção apenas à fonte, em um esforço para conservar sua saúde mental e evitar o afogamento em um mar de informações.
Embora o desenvolvimento de redes pessoais de fontes confiáveis seja algo útil, pode acabar na primazia das tribos sobre a democracia, com o instinto desempenhando um papel decisivo na distinção dos fatos que acreditamos daqueles que descartamos.
Este é, de fato, um paradoxo central da era da internet: o acesso fácil a uma grande quantidade de informações não se traduz necessariamente em maior abertura e transparência. De fato, pode ser até mais fácil ocultar a verdade.
Neste ponto, por exemplo, a maioria das pessoas não diferencia exatamente entre os emails perdidos do servidor privado de Hillary Clinton dos emails DNC roubados pela Rússia e distribuídos pelo WikiLeaks. E depois de misturar tantas histórias afins por tanto tempo, alguém pode descrever com precisão o verdadeiro relacionamento de Trump com a oligarquia russa?
Quando somos forçados pela sobrecarga a substituir informações e fatos por impressões e sentimentos, tornamo-nos muito mais fáceis de manipular.
Há muito tempo, Vladimir Putin já entendeu como aproveitar a psicologia humana e usar a desinformação para avançar nos seus objetivos. As grandes fábricas de trolls e as operações secretas da FSB que ele supervisiona visam, acima de tudo, sobrecarregar os consumidores da mídia oficial. Uma vez que as pessoas estão completamente frustradas e desconfiadas de todas as fontes, tornam-se presas fáceis dos seus impulsos humanos básicos, como o nacionalismo, o medo do outro ou a glorificação do passado.
O objetivo da desinformação não é apenas fornecer informações erradas ou promover uma agenda específica. É desvalorizar todo o conceito de verdade e incutir um estado perpétuo de dúvida e confusão.
Não podemos quantificar o impacto das técnicas de Putin na votação, mas podemos dizer com certeza que a sua intromissão ajudou a alargar as divisões já existentes na sociedade americana em grupos de identidade cada vez mais hostis. Impulsionados pelo medo e pela incerteza, muitos americanos recuaram para os espaços conhecidos da religião, raça, comunidade e classe social, em vez de abraçar ideais compartilhados.
Eu não defendo um governo ou uma mídia que não sejam desafiados pelo povo, mas acredito que devem ser mantidos um equilíbrio e um grau de boa fé nas instituições que o merecem. Na democracia, deve haver um lugar para a verdade – um espaço que permita o diálogo, a compreensão e a cooperação – e os esforços não partidários sinceros para revelar essa verdade.
Infelizmente, nenhum dos candidatos presidenciais conseguiu levar os americanos à unidade. Em vez disso, os Estados Unidos têm agora um presidente eleito que está muito disposto a abanar as chamas da divisão para fazer crescer o seu sucesso pessoal. Espero que os Estados Unidos possam tomar uma resolução coletiva e reavivar os valores de abertura, integridade e colaboração que mantêm forte a democracia.
Trump ganhou a eleição: não há como voltar atrás. A chave será lembrar constantemente a ele e aos seus apoiadores de que ele foi eleito presidente de uma república democrática, não foi ungido imperador, e que o Estado de direito é o que fez os Estados Unidos sobreviverem e prosperarem por tanto tempo.
Junto com muitos outros países, os Estados Unidos estão testemunhando um ressurgimento de forças que exigem um retorno ao passado sombrio, com crenças sectárias e poderes regionais triunfando sobre valores universais. A batalha entre a modernidade e o arcaísmo não é de hoje, mas agora está se desenvolvendo no ciberespaço, e aqueles que rejeitam o progresso têm igual acesso aos frutos da tecnologia.
Para combater o caos e a contínuo debilitação das nossas instituições, devemos lembrar que o fundamento da democracia – que as pessoas devem ter voz na sua governança – deve permanecer incontestável.
Embora a livre discussão seja um componente-chave da liberdade, devemos também estar atentos às ameaças de propaganda hostil, inundação de notícias e informações tendenciosas. Não podemos confiar em instituições públicas ou privadas para nos salvar, a menos que também façamos algo para nos resgatar, passando a estar informados e sermos usuários atuantes da informação e da tecnologia. Devemos nos informar e devemos permanecer críticos das nossas fontes, mesmo quando concordemos com as suas conclusões.
Muitos remédios propostos seriam, na prática, mais perigosos do que a própria doença que desejam curar. Infringir a liberdade de expressão é mais prejudicial do que divulgar notícias falsas, por isso, cuidado com os comprimidos que você engole. A censura é raramente anunciada como censura, e quase toda lei que restringe as liberdades dos cidadãos é proposta, num primeiro momento, como uma forma de protegê-los.
As agências governamentais devem limitar-se a impor condições justas e a proteger os cidadãos contra a exploração e a fraude. Elas devem tentar criar um nível de transparência que capacite as pessoas a tomar decisões conscientes, da mesma forma como os rótulos de alimentos que detalham os ingredientes e os dados nutricionais nos ajudam a decidir sobre o seu consumo.
Deixar dados disponíveis não é suficiente. As histórias divertidas que confirmam os nossos preconceitos podem ser algo irresistível, especialmente se vierem de pessoas que apoiamos. As teorias da conspiração e de é proibido proibir são sempre populares, especialmente entre pessoas que, como Trump, estão ansiosas para se chamar de outsiders.
Talvez possamos começar com um modelo de como a mídia deve se comportar em uma época em que simplesmente relatar ambos os lados de uma história não ajuda mais o jornalismo objetivo. Juntamente com o quê, quantas vezes, e quão alto as pessoas dizem as coisas, precisamos de mais foco sobre se o que elas estão dizendo é a verdade. Não podemos simplesmente bloquear a propaganda tendenciosa sem prejudicar a liberdade de expressão, e nunca podemos impedir as pessoas de acreditar no que querem acreditar. Mas se fizermos um esforço para informar e assim proteger a nós mesmos e aos outros, podemos deixar para trás, lenta e constantemente, as falsificações e as fraudes.
A credibilidade das democracias de hoje depende do restabelecimento do valor da verdade, algo que nenhum número de seguidores de mídia social ou capacidade tecnológica deveria ser capaz de subverter. No momento, estamos vivenciando uma crise cultural em que a propaganda tendenciosa tem uma vantagem tática. É fácil mentir. Encontrar a verdade requer mais esforço. Mas esse esforço é a única maneira de nos defender da exploração e as nossas democracias, da subversão.
A legislação, as políticas corporativas e a tecnologia não podem nos guiar sozinhas por esta crise. Nós, como indivíduos, precisamos crescer em sensibilidade e agir.
A verdade é uma vacina contra a propaganda e a manipulação política. O nível geral de imunidade de uma sociedade a essas ameaças aumenta na medida em que mais pessoas absorvem a verdade. Como aquela picada no braço, a verdade pode ser dolorosa por um segundo, mas os seus benefícios superam amplamente a dor.