Embora seja sensato proteger os dados dos provedores de internet, o acesso a dados pessoais por parte de governos autoritários é uma ameaça muito mais sinistra.
Embora a maioria dos especialistas concorde que os primeiros cem dias de Trump no cargo tenham sido desapontadores na frente legislativa, ele conseguiu aprovar uma medida sobre privacidade na internet que causou muita movimentação na mídia. Ela seria a reversão dos regulamentos de privacidade que impedem que provedores de internet (ISPs) vendam os históricos de navegação dos usuários a terceiros. Assim que pareceu provável que a medida chegasse à mesa do presidente, artigos e mais artigos foram escritos criticando o desenvolvimento. Manchetes sensacionalistas anunciaram o fim da internet como conhecemos, uma entrega completa de nossos dados pessoais às grandes corporações e as mídias sociais foram incendiadas com gritos de “o fim da privacidade”.
Não podemos mais delegar nossa pesquisa e tomada de decisão sobre tecnologia a terceiros. Todos nós devemos ser usuários informados sobre as ferramentas digitais que estruturam nossas vidas.
Assim como com a maioria das histórias de tecnologia, as nuances foram subestimadas e a maioria do público ficou com uma versão incompleta dos eventos. Os lados que se formaram rapidamente, separados pela linha que divide os apoiadores dos partidos políticos americanos, tornou isso ainda pior. Eu gostaria de oferecer uma visão mais equilibrada e, ao fazer isso, tratar de alguns erros de concepção em torno dessas questões. É importante que todos tenham uma compreensão sólida sobre esses conceitos e eu incentivo que você pesquise mais por conta própria. Não podemos mais delegar nossa pesquisa e tomada de decisão sobre tecnologia a terceiros. Todos nós devemos ser usuários informados sobre as ferramentas digitais que estruturam nossas vidas.
Primeiramente, embora eu não enalteça a legislação como benéfica ao consumidor, ela também não é o retrocesso dramático que as manchetes em pânico criaram. As regras que ela repele foram introduzidas pela administração Obama em 2016, portanto, são relativamente novas e controversas, pois foram emitidas pela FCC e não a FTC (que os provedores de internet argumentam que é a agência com poder para regular a privacidade na internet). Além disso, empresas como a Google e Facebook já conseguem coletar as informações dos usuários e entregá-las a terceiros para fins de publicidade. Essas informações são mantidas anônimas, mas continuariam assim se fossem coletadas pelos provedores de internet. O regulamento que impede vincular os dados de navegação às identidades dos indivíduos permanece em vigor. Um motivo de preocupação, no entanto, é o escopo do histórico de navegação disponível aos provedores de internet. Enquanto a Google, Facebook e outras empresas similares podem acessar uma parte segmentada de sua atividade na internet, seu provedor de internet tem acesso a tudo que você faz online, que é outro motivo pelo qual as conexões criptografadas são mais pertinentes que nunca.
É razoável se preocupar com essa expansão de coleta de dados, mas ela perde importância quando comparada a outras ameaças na era da internet. Para alguém que deseja manter-se seguro online, há procedimentos que podem ser seguidos que oferecem um nível confiável de proteção (mais sobre isso abaixo). Mas, considere as grandes implicações da vigilância da internet para aqueles que não vivem em sociedades livres. Pode ser um pouco desconcertante ver um pop-up ao verificar seu e-mail, anunciando equipamento de caminhada quando você está concentrado em uma leitura. Mas, essas informações são manuseadas por empresas conhecidas com a motivação de fazer dinheiro com seus cliques e compras. Isso pode ser invasivo, mas, na maioria dos casos, é algo que você pode optar por não aderir e as empresas que abusam de suas informações estão sujeitas a processos judiciais e reação pública. Da mesma forma, representantes eleitos são responsáveis perante os eleitores e uma avalanche de telefonemas é frequentemente suficiente para virar a mesa.
É razoável se preocupar com essa expansão de coleta de dados, mas ela perde importância quando comparada a outras ameaças na era da internet.
Em contraste, regimes repressivos que tentam explorar esses repositórios de dados têm metas muito diferentes e muito mais sinistras. Seu objetivo não é aumentar a receita do trimestre, ou proteger os cidadãos contra o terrorismo, mas controlar melhor sua população, incluindo a perseguição a dissidentes. Vale a pena defender cada direito e resistir à expansão do poder corporativo e público em nossas vidas, mas é importante manter a perspectiva. Governos autoritários estão tomando medidas para influenciar e controlar uma grande parte da esfera digital. Devido à natureza sem fronteiras da internet, eles estão chegando ao mundo livre para perseguir seus interesses.
Um exemplo: a lei Yarovaya aprovada na Rússia em 2016, que exige que todas as empresas de internet que operam no país mantenham cópias das comunicações por seis meses e metadados por três anos, dentro das fronteiras. A lei estipula também que as empresas devem divulgar essas informações ao governo mediante solicitação e sem ordem judicial. Finalmente, as informações que são codificadas devem ser entregues às autoridades com uma chave de criptografia. A Google e Apple já concordaram, enquanto o Twitter está brigando com o governo em certas disposições e o LinkedIn já foi banido por não concordar. As consequências aos usuários desses serviços na Rússia são enormes. Ela dá ao governo poderes virtualmente irrestritos para examinar qualquer comunicação que desejar, a qualquer momento, e isso não deixa de afetar usuários também em outros países. Também, na Rússia, não há verificações ou vigilância, como grupos de cidadãos ou um judiciário independente para monitorar os observadores.
Governos autoritários estão tomando medidas para influenciar e controlar uma grande parte da esfera digital. Devido à natureza sem fronteiras da internet, eles estão chegando ao mundo livre para perseguir seus interesses.
Os usuários em todo o mundo deveriam conhecer esses desenvolvimentos perigosos e pressionar as empresas envolvidas para reconsiderar sucumbir às demandas dos ditadores. A mídia também deve mudar seu foco de batalhas em grande parte políticas aos movimentos problemáticos que podem ser efetuados por regimes repressivos para restringir a liberdade da internet.
Meu conselho é duplo: mantenha-se em segurança, claro, mas preste também atenção no quadro geral. Quanto à primeira recomendação, não tome medidas excessivas onde elas não são justificadas, como ferramentas que parecem úteis, mas podem realmente fazer mais mal do que bem. Em meio a todo o barulho em torno do movimento de desregulamentação de Trump, muitos sites promoveram os benefícios das VPNs (redes privadas virtuais) para escapar dos olhos dos provedores de serviço. O que foi mencionado com muito menos frequência, é que algumas VPNs fazem mais para rastrear e registrar sua navegação que os provedores de internet. Algumas também podem não ser tão seguras como você imagina. Se você escolher esse caminho, certifique-se de usar uma empresa com uma reputação estabelecida e ler as letras pequenas. Defesa coletiva significa poder responsabilizar empresas caso elas traiam nossa confiança.
Como minha segunda recomendação, à medida que você empregar ferramentas digitais com que contamos todos os dias, lembre-se que tudo tem um efeito. Da mesma maneira que muitos se conscientizaram sobre as práticas de trabalho que estão por trás de suas marcas de roupa favoritas, devemos estar conscientes das políticas que as grandes empresas de internet adotam em todo o mundo. Não é algo fácil de entender, como uma fábrica precária ou trabalho infantil, mas trata-se de compreender que nossa experiência na internet é facilitada pelas mesmas empresas que podem ser cúmplices em abusos de segurança cibernética em outros lugares. Se nos importamos com o futuro da internet mais amplamente, além do interesse estrito em nossa segurança pessoal, devemos deixar claro que não toleraremos nenhum sacrifício de liberdade em nome do lucro.
Foto: Erwan Hesry