Os consumidores podem mostrar o caminho, pressionando as empresas de tecnologia para que respeitem a segurança e a democracia

Garry Kasparov 21 abr 2018

Estamos nos primeiros meses de 2018 e o escopo das atividades digitais malignas já está se expandindo.

Claro, o exemplo na mente de todos é a interferência russa na eleição presidencial de 2016, agora ainda mais confirmada pela investigação do promotor especial Robert Mueller. O uso das mídias sociais pelo Kremlin para fomentar as tensões partidárias existentes nos EUA, obtido através de uma sofisticada operação multimilionária, resultou no indiciamento de treze cidadãos e três empresas russas, em fevereiro.

Vemos os perigos de nossas vidas tecnológicas nas manchetes dos jornais todas as semanas e é essencial distinguir a histeria de ameaças ainda maiores. No mesmo dia do primeiro acidente fatal envolvendo um carro autônomo, o Facebook entrou na linha de fogo após ter revelado que uma empresa coletou dados de mais de 50 milhões de perfis na rede social para criar perfis de eleitores. A morte da pedestre em Arizona foi, claro, uma tragédia e nos lembra de que sempre há revezes e perigos na corrida para conquistar qualquer nova tecnologia. No entanto, as notícias do Facebook, em conjunto com o que já foi revelado sobre a exploração da plataforma pela propaganda russa e por notícias falsas, são muito mais relevantes em relação às ameaças que nós e nossa sociedade enfrentam em nosso ambiente altamente tecnológico.

A troca de dados pessoais por serviços se tornou tão comum porque funciona. Como o especialista Zeynep Tufekci descreve, a história do Facebook no New York Times não é tecnicamente uma violação de dados e sim um modelo de negócios. Para os usuários, parece que o serviço é gratuito e isso pode ser verdade, pessoalmente, pelo menos a curto prazo. Ter todas as suas informações (e sua rede social) vendidas a anunciantes ou operadores políticos pode parecer um pouco assustador, mas isso seria tão ruim? Primeiro, saiba que todos os dados pessoais que você compartilha em troca de serviços não ficam em um único local. Eles são frequentemente vendidos, comercializados e roubados. Depois, eles são explorados de maneiras que apresentam grandes riscos à sociedade, permitindo direcionamento e manipulação em uma escala possível apenas na era digital.

Nenhum de nós vai “viver offline” ou excluir todas as contas de mídia social. (Embora a saída de usuários e a ameaça de boicote de outros seja, provavelmente, a maneira mais eficaz de pender a balança novamente para o lado da privacidade do usuário). Podemos, no entanto, nos proteger melhor. A maioria das plataformas de mídia social tem configurações de privacidade que oferecem muita pouca privacidade como padrão, mas que você pode tornar mais rigorosa. Alguns navegadores permitem isso também em suas configurações e alguns aplicativos de segurança de terceiros podem funcionar até melhor. Se a ideia de uma empresa ou cibercriminosos passeando pelo seu histórico de navegação deixa você nervoso, uma VPN está se tornando uma escolha comum. Se isso parece uma chateação, pense que trancar as portas do seu carro e escovar seus dentes todos os dias, também são. Fazemos isso por saúde e segurança e a higiene digital tem a mesma importância.

Dois outros eventos recentes destacam o potencial para abuso de governos no espaço virtual. Tais eventos acontecem o tempo todo, sejam eles cobertos amplamente pela mídia por alguns dias ou sob o radar até que um escândalo maior aconteça. Há mudanças que podemos forçar em nossa infraestrutura de tecnologia, que poderiam nos manter mais seguros, embora as empresas que criam e mantêm essa infraestrutura devam ser também pressionadas para tornar o ambiente mais seguro. Mudanças sistêmicas são necessárias para garantir que os produtos da inovação digital contribuam para o florescimento humano e não para o autoritarismo e repressão.

Macau, um território autônomo no sul da China, recentemente apresentou uma nova legislação de segurança cibernética. Se for aprovada, ela estabelecerá um regime de vigilância draconiana na região. Todos os usuário de internet precisarão se identificar totalmente, usando seus nomes reais em todas as suas atividades online. Os provedores de serviço de internet serão obrigados a manter registros dessas atividades por um ano. Comitês locais e centralizados de segurança cibernética serão criados para acompanhar essas informações, trabalhando em conjunto com departamentos de governo, ostensivamente para evitar ataques virtuais. Em resumo, a legislação criaria as fundações para uma vigilância em massa do estado sob o disfarce de maior segurança nacional.

Macau, um posto avançado português até 1999, ainda tem alguns vestígios de liberdade democrática e esse é o único motivo pelo qual as notícias sobre esse programa se tornaram disponíveis. No resto da China, assim como em muitos estados autoritários, uma infraestrutura digital totalitária já está em vigor. Como sempre faço, lembro que, embora muitos países livres também possuam uma poderosa capacidade de coleta de dados, eles fazem parte de um cabo de força entre vigilância governamental, mídias, ONGs e cidadãos empoderados. Nada disso existe em uma ditadura. O importante é como o governo trata as pessoas.

Também em fevereiro, a plataforma de mídia social de propriedade do Facebook, o Instagram, removeu as publicações do ativista de oposição russo, Alexei Navalny, após uma reclamação do governo russo, seguida por ameaças de banir totalmente o serviço na Rússia. As publicações fornecem evidências de corrupção, contendo imagens e filmagens feitas em um iate privado, que sugerem o oferecimento de suborno por um conhecido oligarca ao vice primeiro ministro. A Rússia exigiu que o vídeo fosse retirado e o Instagram atendeu o pedido, embora o vídeo permaneça disponível no YouTube da Google.

É muito preocupante ver que empresas sediadas nos EUA, que foram bem-sucedidas graças à abertura e concorrência no mundo livre, se curvam tão prontamente às demandas de países autoritários. Em um país como a Rússia, onde o governo tem o monopólio virtual sobre mídias tradicionais, a mídia social é essencial para que os ativistas atinjam seus apoiadores. Quando o Facebook retira informações sensíveis sob ordens de uma ditadura, ele apoia diretamente a supressão das vozes dissonantes desse regime. Há também vantagens em enfrentar os blefes desses regimes. Na verdade, banir o Facebook e Instagram, ou Google e YouTube, ou iPhones, teria sérias repercussões contrárias na Rússia e em qualquer outro lugar. Em vez disso, esses regimes aproveitam um padrão duplo ao ameaçar e censurar essas plataformas de propriedade americana.

Empresas como Facebook, Google e Apple devem articular quais princípios defendem. O progresso tecnológico não é um valor humano. Não existe neutralidade. As declarações de que são apolíticas são equívocos e até mesmo o “não fazer nada” torna essas empresas cúmplices. As empresas do mundo livre que dão poder aos regimes mais repressivos do mundo devem ser responsabilizadas. O mito de que o envolvimento econômico por si só ajudará a liberalizar governos autoritários foi refutado ao longo do tempo. Ditaduras usam essas poderosas ferramentas contra seu próprio povo e contra as nações que as criaram. Elas podem não ter sido projetadas como armas, mas são usadas como tais.

As gigantes da tecnologia devem acabar com esses dois pesos e duas medidas (ou mesmo a falta de pesos e medidas), mesmo se isso significa ficar de fora de certos mercados. Elas devem reconhecer que possuem um enorme poder para moldar o futuro e, principalmente, a proteção da liberdade e democracia é de seu próprio interesse a longo prazo. Elas são os alicerces da inovação. Um mundo sem elas é um mundo em que o potencial humano não é concretizado e os avanços tecnológicos futuros nunca são atingidos. Os consumidores têm o poder de impulsionar essas mudanças, o que é preferível no lugar de um regulamento governamental que acabe inibindo a inovação.

Claro, mesmo se as gigantes de tecnologia instituírem essa abordagem corajosa e visionária, ainda enfrentaremos ameaças. A China e a Rússia podem desenvolver suas próprias ferramentas. Já vimos a Rússia explorar os pontos fracos na arquitetura da internet (e natureza humana) para manipular eleições em todo o mundo. A China, enquanto isso, tem a vantagem de uma imensa população, que a ajuda a reunir enormes quantidades de dados, fundamental para o progresso na esfera da inteligência artificial. Apesar disso, o mundo livre ainda possui uma vantagem decisiva. Temos poder intelectual enorme, criatividade e estamos à frente. Devemos lutar para manter essa vantagem.

Isto dito, gostaria de concluir homenageando um dos maiores visionários da internet e um dos seus mais inabaláveis otimistas. John Perry Barlow, o fundador da Electronic Frontier Foundation (EFF), faleceu mês passado aos 70 anos. A EFF é uma organização sem fins lucrativos focada em defender a liberdade de expressão e privacidade online através de análises de especialistas, advocacia jurídica e campanhas de organizações de base.

Eu apoio a missão da EFF e os esforços pioneiros de Barlow para concretizar a incrível promessa da internet. Mas, talvez devido à minha história soviética, minha filosofia diverge em uma maneira fundamental. Embora o mundo precise de visionários utópicos para nos ajudar a perceber o potencial e inspirar nossos sonhos, meu lado realista me lembra que a realização de qualquer potencial de tecnologia depende das intenções das pessoas que a utilizam. Embora a internet ofereça um espaço que pareça transcender a dinâmica de poder tradicional, ela se tornou, inevitavelmente, outra arena para os mesmos conflitos globais que ocorrem offline. O mundo online é inseparável de nosso mundo humano. Não podemos escapar dos problemas de maus governos e valores odiáveis através da ilusão sedutora da ciber-utopia. Deve ser possível influenciar a arquitetura da internet para dificultar os abusos de criminosos e ditadores, sem perder a liberdade e inovação que ela permite no mundo livre.

Como parte da luta contra a repressão, devemos então pedir que as grandes empresas de tecnologia façam a sua parte, além de instituir medidas de design tecnológico de senso comum, que dificultem a utilização indevida das ferramentas digitais. Supervisão, transparência e responsabilidade serão sempre os pilares. Não há outra maneira de criar a confiança que diferencia o mundo livre do mundo sem liberdade. Em conjunto com um pedido mais amplo da sociedade por liberdade e democracia, essas etapas podem ajudar a transformar a atraente visão de otimistas da internet, como Barlow, em uma realidade duradoura.

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