Garry Kasparov fala sobre como a internet potencializa o delicado balanço entre regular a linguagem difamatória e permitir a liberdade de expressão.
Uma nova lei foi aprovada na Alemanha em junho, exigindo que as empresas de mídia social excluam conteúdo qualificado como discurso de ódio em 24 horas, sob o risco de serem multadas a partir de US$ 5 milhões e até US$ 57 milhões. A lei e a controvérsia que a envolve levantaram muitas questões importantes com relação à natureza do discurso de ódio e o equilíbrio entre a livre expressão e a regulação, além do papel das empresas privadas e autoridades governamentais na supervisão, só para citar algumas.
O problema do monitoramento de conteúdo digital ganhou destaque nas eleições presidenciais dos Estados Unidos no ano passado e muitos desses problemas já eram alvo de debate público. Mas a história da Alemanha coloca-a em uma posição única em termos de liberdade de expressão, aumentando os riscos do que está em jogo em qualquer comentário de ódio. Com leis rigorosas, que criminalizam o discurso de ódio em livros, levando a punições de até 5 anos de prisão, você pode considerar que essas novas leis simplesmente sejam uma extensão de políticas existentes. Mas, como tento consistentemente fazer através de minhas publicações de blog mensais aqui, nós temos que fazer duas perguntas cruciais: como a internet transforma essa questão e como devemos responder?
Um bom ponto de partida para nossa discussão é, em primeiro lugar, obter uma clareza maior sobre o que conta como discurso de ódio. Se não pudermos concordar sobre os tipos de declarações que cruzam essa linha, então como podemos esperar encontrar uma solução regulatória comum? A legislação recentemente aprovada na Alemanha simplesmente transfere a definição usada na esfera offline para o mundo do Facebook, Twitter e YouTube. O que já é ilegal como declaração pública, como uma negação do Holocausto publicada em uma revista impressa ou proferida em um programa de noticiário de televisão, seria igualmente inaceitável em uma publicação ou comentário na internet.
Isso cria um problema óbvio, que é: as fronteiras nacionais dentro das quais a Alemanha pode regular seu discurso público, não existem online. Uma publicação gerada em um país sem leis de discurso de ódio rígidas teria que ser removida da internet em outra nação, sem entrarmos na discussão se a real origem dela poderia ser realmente determinada. E o que “origem” significa online? A cidadania ou residência de uma pessoa que fez a publicação? O local do servidor em que a publicação está hospedada? A nação da sede da corporação que é proprietária desse servidor? Você começa a perceber porque a internet tem sido uma benção aos advogados! É isso que queremos para uma plataforma universal que transcende intrinsicamente as fronteiras dos Estados?
Afinal de contas, se a Alemanha pode exercer pressão suficiente em uma empresa de mídia social para aplicar seus padrões de censura fora da Alemanha, o que dizer dos padrões de outras nações e grupos, especialmente daqueles autoritários? Fundamentalistas religiosos de algumas religiões já pressionam para banir imagens de mulheres com trajes considerados inadequados por eles. A China ficaria feliz em estender sua censura da internet doméstica de nomes de dissidentes e termos como “Praça da Paz Celestial” a toda a internet. Patrulhar os limites do discurso de ódio online é muito mais difícil que patrulhar as bordas nacionais de um estado nação.
Podemos ver como isso está ligado à nossa pergunta central: como a internet amplia o equilíbrio delicado entre regular a linguagem difamatória e permitir a liberdade de expressão? Nós precisamos lutar agora não só com as políticas e cultura de um único país, como também com a esfera digital globalizada que coloca dezenas de etnias, idiomas e religiões em contato. Frequentemente, o confronto com tantas visões de mundo discordantes pode ser duro. Como podemos criar políticas que permitem que pessoas obtenham novas perspectivas através de sua experiência online, sem negar os conceitos universais de certo e errado?
Nesse assunto, acredito que não podemos ser relativistas, argumentando que toda opinião merece estar em pé de igualdade. Objetivamente, certos países e culturas estão a frente de outras no que eu chamarei de “evolução moral”. Os Pais Fundadores dos Estados Unidos não viam a escravidão como amoral. Hoje, consideramos a prática moralmente impensável. Acredito que outros países chegarão às mesmas conclusões sobre certos sistemas de crença que eles atualmente sancionam. A Declaração Universal dos Direitos Humanos seria uma ótima meta para tornar realmente universal. Enquanto isso, devemos encontrar uma maneira de coexistir em plataformas que muitos de nós compartilham e isso significa instituir regulamentos que respeitam nossos valores profundamente enraizados, sem inibir compartilhamento e aprendizado cultural.
O debate sobre a substância do discurso de ódio é inseparável das preocupações práticas sobre seu policiamento. Nesse ponto, também, a legislação atual não oferece uma resposta satisfatória. Ela passa a responsabilidade do governo às empresas de tecnologia, para criar grandes forças-tarefa de funcionários para esse fim ou para desenvolver algoritmos treinados por humanos que possam tomar essa decisão. Embora alguns casos sejam óbvios, é nas exceções em que as complicações aparecem, tanto tecnicamente quanto eticamente.
Um ocidental pode achar que a suástica é um caso claro e que pode ser facilmente detectado por um algoritmo de correspondência de imagem. Isso pode ser exato 95% das vezes, mas esse símbolo nazista odiável é muito comum na Índia, Nepal, Sri Lanka e China, como um símbolo budista, hindu e taoísta e onde seu uso tradicional e religioso é anterior aos nazistas (e à Alemanha). Um ser humano com conhecimento pode diferenciar entre as suásticas em uma passeata neonazista em Hamburgo e um mosaico em um templo indiano, mas e uma máquina? Como sempre, o contexto é tudo e o contexto é exatamente aquilo em que as máquinas são ruins, limitadas como são por seus conjuntos de dados e regras restritas. Você pode expandir o conteúdo da máquina fornecendo mais dados, especialmente sobre a pessoa que fez a publicação, mas então entramos em choque com a questão da privacidade. Quanta informação devemos fornecer a uma empresa ou ao governo para provar nossa inocência a um algoritmo?
Mas, como diz o ditado, o demônio está nos detalhes. Tanto pessoas quanto computadores terão que trabalhar mais duro para determinar contexto, intenção e impacto. Que tipos de diretrizes as empresas de tecnologia implantarão para funcionários encarregados de sinalizar e desativar conteúdo? Quais cálculos eles integrarão em suas inteligências artificiais encarregadas de remover material difamatório? Onde nesse processo, nós, cidadãos zelosos, podemos ter certeza que nossos valores estão sendo capturados e integrados aos mecanismos que regerão nosso discurso público?
Como sempre, não tenho a intenção de ter a resposta ideal ou mesmo declarar que uma definitivamente existe. Definir discurso de ódio, sem contar como monitorá-lo e controlá-lo (e mesmo se isso é desejável), é um empreendimento enormemente complicado. Minha meta aqui é delinear os parâmetros para uma discussão informada, que eu espero que as questões acima consigam cumprir. A meta maior é continuar a progredir para concretizar nossos ideais, mesmo admitindo que a perfeição nunca estará a nosso alcance.
Eu também preciso dizer algumas palavras de cautela, dada a minha experiência muito pessoal com governos repressivos. A linha entre criminalizar difamação e censura explícita é muito fácil de cruzar. À medida que consideramos o equilíbrio entre liberdade de discurso e supervisão controlada, devemos ter em mente que restrições aprovadas no mundo livre com boas intenções podem ser (e serão) usadas inapropriadamente por governos autoritários. A notória lei de propaganda antigay da Rússia, por exemplo, bane qualquer tipo de discurso que “endosse comportamento homossexual a menores” e tem sido abusada como arma de perseguição política. Tal restrição ampla e vaga significa que sua aplicação depende totalmente da legislatura controlada pelo Kremlin, que pode escolher quais instâncias processar dependendo dos seus caprichos. É uma maneira fácil e conveniente de silenciar visões não tradicionais ou dissidentes que ameaçam o regime.
Da mesma forma, leis contra “extremismo” podem soar uma boa ideia em locais que lutam contra populações radicalizadas que espalham propaganda de ódio e clama por ações violentas. Mas, na Rússia e outros locais que combatem regimes autoritários, qualquer oposição ao governo é rapidamente rotulada de extremista e banida, desde panfletos até passeadas e mesmo sites, terminando frequentemente em prisões. As democracias não são imunes ao abuso de tais leis, é verdade, mas pelo menos há recurso político, debate e uma mídia livre para contrabalancear.
Textos legalistas que tentam codificar o discurso de ódio não são uma solução real. Em vez disso, devemos ter como objetivo um texto mais amplo que consagra nossos princípios globais, que será muito mais difícil para regimes cínicos subverterem e que manterão a porta mais aberta possível para a liberdade de expressão e a liberdade individual, para manter o mundo livre, livre. O melhor que podemos fazer para nos proteger contra discursos de ódio reais, mantendo a liberdade de expressão essencial ao desenvolvimento humano, é manter e refinar a mentalidade moral da sociedade que desejamos, online e offline. As especificidades do que exatamente pode ser dito, onde, quando, etc. sempre serão debatidas, claro. Mas não é tão ruim ter o diabo nos detalhes, se os anjos estiverem pintando as linhas gerais.