Como o bitcoin iniciou o que pode ser uma revolução tecno-industrial

Byron Acohido 29 nov 2019

A tecnologia blockchain não se limita a criptomoedas; ela pode se tornar a base para permitir que as pessoas tenham controle sobre suas vidas digitais

Cerca de 20 anos atrás, os fundadores da Amazon e do Google basicamente definiram o curso de como a internet viria a dominar a forma em que vivemos.

Jeff Bezos, da Amazon, e Larry Page e Sergey Brin, do Google, fizeram mais do que quaisquer outras pessoas para estabelecer o comércio eletrônico como é hoje, incluindo também a sua parte sombria, que envolve ameaças crescentes contra a privacidade das pessoas e a cibersegurança.

Hoje podemos estar à beira da próxima grande revolução. Em 2019, a tecnologia blockchain pode ser apenas o que a internet era em 1999.

Blockchain, também chamada de tecnologia de contabilidade distribuída* (DLT, da sigla em inglês), é muito mais do que apenas o mecanismo por trás do Bitcoin e da febre especulativa das criptomoedas*. A DLT tem o potencial de abrir novos horizontes de comércio e cultura baseados em um novo paradigma de transparência e colaboração.

Alguns acreditam que, dessa vez, não haverá uma meia dúzia de empresários da área de tecnologia dominando um pedaço das mais ricas minas digitais de ouro. Ao invés disso, dizem os otimistas, as pessoas irão se levantar e tomar controle direto de cada aspecto de suas vidas digitais. Isso forçará as empresas a adaptarem seus modelos de negócios a uma nova ética de colaboração para um bem maior.

Ao menos esse é o cenário utópico amplamente defendido por líderes como o economista e sociólogo Jeremy Rifkin*, cuja palestra “A terceira revolução industrial: uma nova economia radical de compartilhamento*”, já conta com 3,5 milhões de visualizações no YouTube. E muitas das inovações de blockchain ganhando espaço hoje está sendo dirigida por prodígios do ramo de software, como o fundador da criptomoeda Ethereum, Vitalik Buteriom*, que valoriza transparência e independência acima de qualquer coisa

Blockchains públicas e DLTs privadas estão em seus estágios iniciais, como dito acima, mais ou menos onde a internet estava na década de 1990*. Desta vez, no entanto, muitos pontos complexos estão em jogo. Também há um consenso e de que a blockchain tomará um caminho completamente diferente daquele da internet.

“Com a internet, uma única empresa poderia tomar uma decisão estratégica e seguir em frente, mas não é esse o caso com a DLT”, diz  Martha Bennet*, analista da Forrester, cuja opinião sobre blockchains serão abordadas adiante. “Blockchain é como um esporte coletivo. É preciso que haja grandes mudanças na abordagem e na cultura corporativa em direção a uma cooperação entre os competidores antes que redes baseadas em blockchain possam se tornar a norma”.

Dito isso, aqui vão algumas coisas importantes que todo mundo deveria entender sobre a revolução da blockchain.

Como as blockchains públicas funcionam

Uma blockchain* não é nada mais do que um banco de dados distribuído que funciona como um livro contábil compartilhado entre diversas partes. Esse livro pode ser compartilhado entre pessoas com um interesse em comum, como proprietários de Bitcoins. Ou pode ser um registro sobre qualquer tipo de informação compartilhada entre empresas ou entre pessoas e empresas. Uma cópia em tempo real do registro contábil é distribuída entre os computadores e os participantes, e um sistema de criptografia avançado evita que registros passados sejam alterados.

Há uma grande diferença entre blockchains públicas, como o Bitcoin e o Ethreum*, e as DLTs privadas, como aquelas que usaram a estrutura de código aberto do Hyperledger*, apoiada pela IBM, Intel, Cisco e dezenas de outras corporações gigantescas. (Mais sobre blockchains a seguir.)

Nas blockchains públicas, qualquer um pode participar. O livro contábil é 100% descentralizado e uma visão transparente de todas as entradas no livro está sempre acessível a todos. Blockchains públicas dependem de um desafio computacional chamado prova de trabalho* para atrair participantes e permitir que a blockchain opere sem a necessidade de alguém agir como intermediário.

A mineração de Bitcoin, por exemplo, é um desafio para solucionar um quebra-cabeça criptográfico que dá o direito de adicionar o próximo bloco de registros válidos na cadeia histórica de blocos contábeis. O vencedor recebe uma “ficha”, um Bitcoin. Todos os outros mineradores competindo uns contra os outros validam o registro, eliminando a necessidade do intermediário.

É difícil apontar o número de blockchains públicas verdadeiras, mas há agora algumas dezenas de iniciativas promissoras que emitem essas “fichas”. Assim, serviços periféricos surgiram para apoiar a negociação e especulação de fichas de blockchain, também conhecidas como criptomoedas, acabando por atrair a atenção das pessoas.

De qualquer forma, criptomoedas são apenas uma pequena parte da tecnologia blockchain.  

O componente disruptivo das blockchains públicas não é o que muitas pessoas pensam. Não se trata apenas de emitir moeda digital.

O fim do intermediário

O componente disruptivo das blockchains públicas não é o que muitas pessoas pensam. Não se trata apenas de emitir moeda digital. O real poder da blockchain está no seu potencial de descentralizar muitos outros tipos de livros contábeis.

Nos próximos 10 ou 20 anos, as blockchains podem começar a substituir todos os tipos de intermediários que hoje controlam os fluxos financeiros, os movimentos de bens e serviços e a distribuição de conteúdo digital. Isso envolve a eliminação de cargos de líderes empresariais como Mark Zuckerberg, CEO do Facebook, e Jack Dorsey, CEO do Twitter, cujas empresas controlam o fluxo do discurso social.

Comentaristas como Jeremy Rifkin e o tecnólogo Andreas Antonopoulos* conquistaram seguidores no mundo todo falando sobre como as blockchains podem possibilitar com que as pessoas controlem e monetizem muitos aspectos de suas vidas digitais. Por exemplo, assisti a uma palestra provocativa de Antonopoulos sobre esse assunto em Seattle (EUA), chamada “Escapando do cartel bancário global*”.

Há esforços para desenvolver e, algum dia, implementar blockchains em larga escala que poderiam descentralizar a emissão de documentos legais*, distribuir e controlar documentos de identidade digital para os mais pobres*, além de dividir e distribuir pagamentos fragmentados* para participantes de uma cadeia de valor. Já há até mesmo ideias de tornar esses livros contábeis distribuídos a base de sistemas de votação em blockchain* à prova de fraudes.

O que move as DLTs privadas

Em contraste, blockchains privadas são essencialmente o produto do setor corporativo reconhecendo que algo grande está acontecendo e, por isso, há a necessidade de se buscar um ponto de apoio* para não ficar para trás. DLTs privadas não precisam de mecanismos do tipo prova de trabalho. Isso se deve a que uma corporação ou um grupo de corporações* têm controle completo na validação e adição de novas entradas de blocos ao livro contábil padrão. Você precisa ser convidado a participar de uma blockchain privada e, mesmo assim, a visualização do livro é restrita apenas a usuários com permissão para isso. Obviamente todos em uma blockchain privada precisam concordar em seguir uma série de regras estabelecidas e aplicadas pelo corpo governante ou pelas entidades.  

O grande atrativo para as corporações na implementação de blockchains privadas é que os dados dos livros contábeis são distribuídos em muitas máquinas, aumentando a eficiência e a flexibilidade de transações de forma muito precisa e difícil de se alterar. Mesmo assim, Bennet, da Forrester, disse que, depois de um furor inicial, as empresas não estão mais correndo atrás de sistemas de blockchain apenas para poderem dizer que estão fazendo algo inovador.

Menos projetos estão sendo lançados no mundo corporativo e as iniciativas que são aprovadas tendem a focar no mapeamento de obstáculos culturais e técnicos que podem aparecer e no estabelecimento de regras técnicas básicas que todos concordem. Essa busca está ocorrendo mais notavelmente na Hyperledger*, um consórcio organizado pela Fundação Linux*, cujos membros fundadores são 30 corporações gigantes* do setor bancário, cadeias de suprimento, manufatura, finanças, IoT e tecnologia. A IBM e a Intel lideram essa iniciativa.

Como as blockchains privadas não usam nenhum tipo de mecanismo de prova de trabalho - justamente aquilo que torna quase impossível de fraudar as blockchains públicas - surgem preocupações ligadas à cibersegurança.

Como as blockchains privadas não usam nenhum tipo de mecanismo de prova de trabalho - justamente aquilo que torna quase impossível de fraudar as públicas - surgem preocupações ligadas à cibersegurança. Sem mineradores competindo para ganhar suas “fichas” e validando a precisão dos registros históricos, um intermediário de confiança se faz necessário. E esse intermediário continua o mesmo de sempre: uma corporação vulnerável. Na verdade, com tantas interfaces girando em volta de um sistema de blockchain, é ainda mais importante para as empresas aderirem a práticas de higiene cibernética altamente rigorosas. Tudo o que estiver relacionado à segurança deve passar direto por isso. Com que frequência isso acontece?

“Aqueles envolvidos nas iniciativas de DLTs privadas mais avançadas descobriram que a operacionalização e escala dessa tecnologia é um grande desafio”, conta Bennet. “Alguns desses desafios irão desaparecer com o avanço das ferramentas digitais, mas outras não, como tornar o sistema e todas as suas interfaces seguras”.

O código aberto colaborativo entra em ação

Essa é a razão da existência da Hyperledge, que não é exatamente uma blockchain e não pode emitir nenhum tipo de criptomoeda própria. Tudo o que a IBM e a Intel querem é que a Hyperledger se torne referência tanto para blockchains públicas quanto para as privadas, padronizando, tanto quanto possível, os componentes de códigos abertos confiáveis. Novamente, pense como as coisas eram 20 anos atrás. Essa é exatamente a forma como o Linux deixou de ser um sistema operacional amador para um comercialmente viável e usado amplamente em redes empresariais.

Falei sobre isso com a Avesta Hojjiati*, chefe de pesquisa e desenvolvimento da DigiCert, uma fornecedora de certificados digitais, que participa ativamente da Hyperledger. “Você pode pensar a Hyperledger Fabric* como o chassi de um carro que foi soldado, pintado e, talvez, tenha suas rodas colocadas”, explica Hojjati. “Você ainda precisa de um motor e de muitas outras coisas para torná-lo funcional. Mas você pode trabalhar com algo que seja de fácil manutenção e implementação”, explica.

Lançada em 2016, a Hyperledger começou incubando projetos como a Hyperledger Ursa*, que foi feita para se tornar uma biblioteca criptográfica compartilhada referência no mercado. “No passado, o uso desse tipo de tecnologia teria exigido conhecimento especializado no assunto”, diz Hojjati. “Hoje, qualquer desenvolvedor pode utilizar a biblioteca Ursa e implementar projetos baseados nessas capacidades”, completa.  

Buscando sinergias público-privadas

Novas ferramentas sob o guarda-chuva da Hyperledger podem ser usadas para nos levar a uma era de comércio global muito mais democratizado. Ou elas poderiam se tornar ferramentas que ajudam a manter os capitães corporativos de hoje no poder.

Eu acredito que ficaremos entre essas duas possibilidades. Livros contábeis públicos e privados já começaram a se juntar. Muita inovação vem por aí. Negociações difíceis precisam ser feitas e avanços arquitetônicos fundamentais devem ser alcançados. As empresas continuaram no jogo, já que aumento na produtividade e maiores lucros são possíveis. Mas seria possível que as blockchains híbridas do futuro próximo também possam explodir minas de ouro digitais existentes e democratizar o acesso à “poeira desse ouro”?

Bennet vem observando e analisando tecnologias emergentes por 30 anos, sendo que, nos últimos cinco, seu foco é: livros contábeis distribuídos. Perguntei a ela qual sua opinião sobre o papel das blockchains no mundo daqui 10 anos. Ela respondeu:

“A única coisa que podemos falar com certeza é que não será nada parecido com o que temos hoje. Não sou contra a blockchain, só estou tentando ser realista. Mesmo que a tecnologia não faça milagres, ela possibilita a realização das coisas de uma forma diferente - radicalmente diferente - de como são feitas hoje. Em outras palavras, as blockchains podem apoiar novos negócios e modelos de confiança, mas primeiramente precisamos planejá-los. Se de um lado comprometimentos serão certamente necessários, questões tecnológicas têm chances de serem resolvidas mais rapidamente do que aspectos não tecnológicos”.

Quando você coloca as coisas dessa maneira, fica difícil visualizar a completa extinção dos principais intermediários de hoje. Talvez eles sejam rebaixados alguns degraus por uma nova geração de intermediários.

A revolução das blockchains já começou. Não tem volta. Isso poderia muito bem nos levar a melhorar questões ligadas à privacidade e à cibersegurança. Com relação ao futuro, só uma coisa é certa: ele não será tedioso. Ficarei de olho.

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